QUANDO A SUBSTÂNCIA CLÍNICA PODE CONFIGURAR EXERCÍCIO ILEGAL DA MEDICINA E ODONTOLOGIA.


Nos últimos anos, os procedimentos estéticos ganharam ampla popularidade no Brasil, impulsionados pela busca quase inalcançável por rostos perfeitamente harmônicos e corpos remodelados. Contudo, essa demanda crescente trouxe à tona uma preocupante distorção do conceito real de estética: aquilo que deveria ser a busca pelo bem-estar pessoal, tendo a beleza como consequência natural, passou a ser visto como a busca desenfreada do padrão de perfeição. Nesse contexto, os fins passaram a justificar os meios, legitimando práticas que privilegiam a beleza a todo custo, frequentemente em detrimento da saúde e segurança dos pacientes.

Um exemplo alarmante desse fenômeno é a aplicação indiscriminada de substâncias clínicas permanentes, especialmente o PMMA (polimetilmetacrilato), por profissionais não habilitados legalmente, ou seja, aqueles que não fazem parte das categorias médicas ou odontológicas. É preciso ressaltar claramente que o problema não reside no procedimento estético em si, nem na região anatômica escolhida, seja no rosto ou no corpo. O problema real está na substância utilizada e na ausência de habilitação legal desses profissionais para aplicar um produto classificado como de risco máximo (classe IV) pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).


O QUE É O PMMA E POR QUE ELE NÃO É UM PRODUTO ESTÉTICO

O PMMA é um polímero amplamente reconhecido por sua biocompatibilidade, rigidez e transparência. É um componente plástico com diversas utilizações na área da saúde e em outros setores. Ele é uma substância versátil, cuja aplicação varia conforme seu processo de fabricação e finalidade.

Direcionado à área da saúde, seu uso na medicina teve início durante a Segunda Guerra Mundial, quando foi empregado na reconstrução de defeitos cranianos provocados por traumas de guerra.

A partir da década de 1950, o PMMA passou a ser utilizado como cimento ósseo para fixação de próteses em cirurgias ortopédicas, consolidando-se especialmente nos procedimentos de artroplastia de quadril.

Na década de 1970, sua aplicação expandiu-se para a oftalmologia, sendo utilizado na fabricação de lentes intraoculares para cirurgias de catarata, graças à sua elevada transparência óptica e estabilidade intraocular de longo prazo.

Como material de preenchimento, o PMMA é apresentado em forma bifásica, composta por microesferas suspensas em gel, permitindo uma aplicação em tecidos moles. Essa formulação começou a ser desenvolvida nos anos 1990, tendo seu uso introduzido no Brasil no final da mesma década, e posteriormente aprovado pela FDA (Food and Drug Administration) em 2006.

No Brasil, o uso do PMMA para fins de preenchimento cutâneo, entre outras funcionalidades, está sujeito a registro prévio na Anvisa, uma vez que se trata de um produto para saúde classificado na categoria IV, correspondente ao nível mais alto de risco sanitário.

Trata-se de uma substância permanente e não absorvível. A Anvisa autoriza seu uso apenas para:

  • Correções reparadoras em sequelas anatômicas faciais e corporais, decorrentes de doenças como poliomielite (paralisia infantil);
  • Tratamento das alterações anatômicas decorrentes da utilização de antirretrovirais, fazendo parte dos procedimentos previstos no Programa Nacional de DST e Aids/SVS/MS;
  • Correção de defeitos tegumentares, isto é, alterações anatômicas patológicas que afetam a pele, o tecido subcutâneo, músculos superficiais e vasos, originadas por traumas, cirurgias, doenças ou condições congênitas.

Esses casos têm natureza médica e reparadora, não se confundindo com insatisfações estéticas.

Na odontologia, ele é utilizado como um produto de suporte protético, como confecção de coroas e base de próteses removíveis (dentadura).

Não há qualquer licença para uso estético do PMMA, seja na face ou no corpo. O produto foi aprovado exclusivamente para fins clínicos.


QUEM PODE UTILIZAR O PMMA LEGALMENTE?

Conforme a legislação sanitária e os registros da Anvisa:

  • Somente médicos e cirurgiões-dentistas estão legalmente habilitados a utilizar o PMMA;
  • A aplicação deve respeitar estritamente as finalidades clínicas autorizadas.

Portanto, sob nenhuma hipótese deve ser utilizado o PMMA para fins estéticos, nem por médicos e dentistas ou qualquer outro profissional, esteticista, biomédico, farmacêutico, enfermeiro e fisioterapeuta habilitado em estética.

A utilização destinada a fins estéticos é altamente contraindicada, independentemente de técnica ou curso de capacitação, pois envolve manipulação de produto clínico permanente, de risco máximo, cuja utilização exige formação médica ou odontológica integral.

A autorização para realizar preenchimento facial ou corporal não implica, automaticamente, autorização para utilizar qualquer substância existente no mercado.

Neste artigo, é importante destacar que não se faz juízo de valor sobre a validade ou invalidade das Resoluções dos Conselhos de Profissionais de Saúde que não são médicos ou dentistas e que reconhecem a habilitação dos seus respectivos profissionais para atuarem na área estética. O ponto é outro: mesmo que se reconheça o direito desses profissionais à prática de realizar preenchimentos faciais e corporais, isso, automaticamente, não os autoriza a utilizar um produto clínico como o PMMA, cuja indicação não contempla a estética.

EXERCÍCIO ILEGAL DA MEDICINA E ODONTOLOGIA POR EXCESSO DOS LIMITES DA HABILITAÇÃO

Uma vez que o PMMA é um produto destinado exclusivamente a finalidades clínicas específicas, cujo uso é permitido apenas a médicos e cirurgiões-dentistas, pode-se dizer que qualquer aplicação da substância por profissionais não habilitados extrapola o limite da sua habilitação profissional.

Ainda que seja controversa e desaconselhada a utilização do PMMA por médicos e cirurgiões-dentistas para fins estéticos, este texto se concentrará especificamente nos profissionais que não possuem habilitação médica ou odontológica. Tal delimitação é fundamental para demonstrar que, nesses casos, a conduta extrapola claramente os limites legais da habilitação profissional, ensejando, portanto, a responsabilização penal.

O Código Penal dispõe em seu artigo 282 sobre o exercício ilegal da medicina, odontologia e da atividade farmacêutica:


Art. 282 – Exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem estar legalmente habilitado ou excedendo os limites de sua habilitação:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos.

Observe: neste artigo, o Código Penal prevê duas condutas distintas, passíveis de criminalização. A primeira é quando o profissional exerce as respectivas profissões sem habilitação legal (não possui graduação ou tem a formação, mas não é inscrito no respectivo conselho profissional); a segunda é quando possui uma graduação, é devidamente inscrito em seu conselho de classe, mas atua fora dos limites legais de sua profissão.

No segundo caso, quando o profissional possui formação em saúde, mas excede os limites da sua atuação legal ao aplicar o PMMA, a conduta pode ser compreendida como um exemplo do que o Direito Penal chama de crime formal. Isso quer dizer que, para que a infração penal esteja configurada, não é necessário que haja dano real ao paciente. A própria ação — ou seja, o ato de aplicar uma substância injetável de uso clínico restrito, sem estar legalmente autorizado para isso — já é suficiente para que haja responsabilização criminal.

Além disso, a lei considera que esse tipo de conduta oferece risco à saúde pública, mesmo que esse risco não se concretize. Por isso, essa prática também pode ser enquadrada como um crime de perigo abstrato, pois não exige prova de que o paciente tenha sofrido consequências negativas. O simples fato de agir fora dos limites legais já representa uma ameaça presumida à coletividade, o que se agrava ainda mais quando a aplicação ocorre fora da finalidade aprovada do produto, como tem sido feito para fins estéticos.

Em outras palavras: o profissional não precisa causar um dano para ser punido — basta aplicar a substância fora das autorizações legais que regem a sua profissão. E essa punição não é apenas ética ou administrativa.

Ademais, a regra do Direito é clara:

“A ninguém é dado alegar o desconhecimento da lei” (art. 3º da LINDB).

Por se tratar de profissionais da área da saúde, presume-se que conheçam os limites de sua atuação profissional e a destinação regulamentar dos produtos de saúde que manipulam. Assim, não é admissível a alegação de desconhecimento da restrição de uso do PMMA; tampouco podem alegar que seus conselhos os respaldam a realizar preenchimento, justificando que a aplicação era “técnica” e não “clínica”, pois a ilegalidade está na aplicação de substância com risco máximo, que não possui a finalidade estética.

Portanto, a possível prática de crime não decorre da realização do procedimento com fins estéticos, mas pela substância aplicada que extrapola o limite da sua habilitação profissional.

Assim, quando um profissional sem habilitação legal aplica PMMA, ele assume o risco de responder criminalmente, pois está atuando além do que a sua profissão permite, mesmo que o paciente não sofra nenhum dano visível.


RESPONSABILIDADE POR IMPERÍCIA TÉCNICA

Quando um profissional da saúde aplica PMMA sem possuir a habilitação legal exigida para esse tipo de procedimento, incorre em ato ilícito, nos termos do art. 186 do Código Civil, podendo ser civilmente responsabilizado pelos danos causados ao paciente.

Ainda que alegue capacitação em preenchimentos faciais ou corporais, não possui a formação técnico-científica exigida por lei para manejar substâncias injetáveis permanentes de uso clínico, como o PMMA.

Nesses casos, não se trata de erro técnico dentro da sua área de atuação, mas sim de atuação completamente fora da sua competência profissional, o que configura violação direta dos deveres legais e éticos mínimos, com risco presumido à saúde do paciente.

Além disso, conforme o Código de Defesa do Consumidor, a relação entre profissional de saúde e paciente é considerada uma relação de consumo, o que implica na inversão do ônus da prova. Assim, cabe ao profissional demonstrar que não agiu com culpa, o que é particularmente desafiador quando se atua fora da área de competência legal.


A SUBSTÂNCIA É O LIMITE. E O PMMA ULTRAPASSA ESSE LIMITE.

Não se trata de deslegitimar o trabalho de esteticistas, biomédicos, farmacêuticos, enfermeiros ou fisioterapeutas que atuam na área estética de forma ética e dentro de suas atribuições. Mas é necessário reconhecer:

  • O uso do PMMA extrapola o limite técnico e jurídico de qualquer profissão que não seja a medicina ou a odontologia;
  • Seu desvio de finalidade agrava ainda mais a atitude do profissional que o utiliza;
  • O paciente tem o direito de saber o que está sendo aplicado e qual a sua real finalidade;
  • O termo de consentimento assinado pelo paciente não legitima o ato ilícito — esse documento não supre a irregularidade do uso de um produto com finalidade diversa da aprovada;
  • A falta de informação sobre o uso clínico exclusivo do PMMA e da ausência de habilitação para manuseá-lo torna o consentimento inválido desde sua origem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: SAÚDE, ÉTICA E RESPONSABILIZAÇÃO

O mercado da estética precisa compreender que não é a técnica que define a legalidade neste caso, mas a natureza e a destinação do produto. O PMMA, apesar de ser utilizado em preenchimentos, não é um preenchedor estético. É um produto de uso clínico, permanente, de risco máximo.

A responsabilidade pela saúde do paciente deve sempre se sobrepor a interesses estéticos ou comerciais. A banalização do uso do PMMA compromete não apenas a segurança dos pacientes, mas também a ética, a legalidade e a credibilidade dos profissionais da saúde estética.

Quem aplica PMMA fora dos limites legais assume conscientemente o risco de ser responsabilizado. E é sempre importante lembrar: os fins nem sempre justificam os meios, especialmente quando o que está em jogo é a saúde e a integridade do paciente.

REFERÊNCIAS. 

ALQUTAIBI, Ahmed Yaseen et al. Polymeric denture base materials: a review. Polymers, Basel, v. 15, n. 3258, p. 1–27, 2023. Disponível em:https://doi.org/10.3390/polym15153258.

BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. PMMA: uso e riscos da substância em procedimentos estéticos. Brasília: Anvisa, 2024. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/campanhas/estetica/pmma

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BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 12 set. 1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm 

BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Diário Oficial da União: seção 1, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm 

BRASIL. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB). Diário Oficial da União: seção 1, Rio de Janeiro, DF, 9 set. 1942. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htmBRASIL. Empresa Brasil de Comunicação. Entenda o que é PMMA e os riscos em procedimentos estéticos. Agência Brasil, Brasília, 7 jul. 2024. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2024-07/entenda-o-que-e-pmma-e-os-riscos-em-procedimentos-esteticos.


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Lays Arruda Resquete é advogada com mais de 10 anos de experiência em Responsabilidade Civil, especializada em Direito Médico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito, Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Estadual de Londrina, e Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná. Atualmente, é mestranda em Direito Médico e Odontológico pela São Leopoldo Mandic. Além da advocacia, atua como Juíza Leiga no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, no município de Terra Rica.

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