Doutora em ciências da saúde pela Faculdade de Medicina da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), mestre em direito privado pela PUC-MG e advogada com atuação exclusiva em direito da saúde, Luciana Dadalto é uma das mais conceituadas especialistas e pesquisadoras da bioética e das discussões que envolvem a autonomia do paciente.
Nesta entrevista baseada no bate-papo feito em abril com Jonatas Vasconcelos, idealizador do Beauty Summit 360, numa live do Instagram, ela afirma que a pandemia do novo coronavírus trouxe muitas dúvidas, não só para profissionais da saúde, e garante que não existem respostas prontas. “As coisas mudam muito rápido e temos que tentar entender o contexto e nos protegermos na medida do possível”, salienta.
Luciana defende que, após conseguirem ser reconhecidos legalmente como profissionais da área da saúde, os esteticistas precisam efetivamente se posicionar e agir como tal, para que o mercado tenha a real percepção do seu valor. Isso implica, segundo ela, entre outros fatores, no compromisso com o cumprimentos das normas de biossegurança e na forma como o profissional oferece seus serviços ao mercado, especialmente neste momento, em que a pandemia reduziu drasticamente os ganhos. Acompanhe os principais trechos da entrevista:
Beauty Summit 360 – Cada vez mais ouvimos falar em bioética na estética. O que ela é especificamente?
Luciana Dadalto – A bioética é um ramo do conhecimento que procura trazer um ponto de convergência entre questões de saúde e as pessoas. Bioética não é uma questão jurídica, filosófica, religiosa ou de saúde. É uma ciência transdisciplinar que trabalha efetivamente os impactos da tecnologia na vida das pessoas. Quando falamos de bioética na estética, abordamos o impacto de todas essas tecnologias no trabalho dos profissionais dessa área, não só esteticistas. Falamos aqui de modificações corporais, da realização de cirurgias, dos procedimentos mais simples e de uma discussão, inclusive, de culto ao corpo e de como lidamos com isso. A bioética tem várias vertentes e é trabalhada de forma diferente em cada país de acordo com sua cultura.
Como é no Brasil?
No Brasil, a vertente mais usada é a do “principialismo”, em que os profissionais da saúde devem balizar suas ações em quatro princípios: o da não-maleficência (não posso fazer mal ao paciente, mesmo que ele deseje); da beneficência (minha ação precisa sempre ter como norte fazer o bem ao paciente); o da autonomia (sempre que possível, respeitar a vontade do paciente); da justiça (pensar no bem da coletividade). Esta última diz muito respeito a este momento específico em que vivemos esta pandemia. A justiça determina que é preciso parar as atividades, tendo um vista o bem maior da coletividade, ou seja, evitar a disseminação do coronavírus. É um dilema, porque não trabalhar significa não ganhar dinheiro e não ter condições de se sustentar. A Covid19 coloca para os profissionais o conflito entre o interesse individual e interesse coletivo.
Como equalizar a questão da sobrevivência e do cuidado com a coletividade? Que riscos assumo neste caso?
É importante entender que não temos proibição de funcionamento dos estabelecimentos. Não há lei para isso. É uma recomendação federal para que procedimentos eletivos em geral não sejam realizados. Dependendo do município, temos regulamentações municipais. Estamos vivendo uma situação de muita insegurança do ponto de vista normativo porque não temos uma normativa do governo federal dizendo que é proibido, mas temos vários municípios que estão cassando alvarás de funcionamento de estabelecimentos que estão em funcionamento. Em Belo Horizonte (MG), onde moro, a prefeitura cassou alvarás de estabelecimentos que estavam funcionando e não eram essenciais. Abrir significa colocar seu negócio em risco para o futuro. Estou disposto aos riscos como perder alvará, ser multado etc? Tem outro risco mais grave, que é o de abrir, ter circulação de pessoas e um paciente contrair coronavírus e imputar a culpa à minha clínica pela contaminação. Isso pode gerar processo judicial de responsabilidade civil e criminal. Temos que tomar cuidado com o pensamento imediatista de que precisamos ganhar dinheiro hoje, o que pode significar nos “quebrar” no futuro. É preciso ponderar. Meu papel é alertar meu cliente sobre esses riscos. Não sou um oráculo e não há 100% de certeza neste momento em relação a esta situação. Cabe a cada profissional avaliar os riscos que ele está disposto a correr.
Como ficam os esteticistas neste cenário?
O esteticista é um profissional de saúde, conforme diz a legislação. Eu penso que o esteticista tem que se posicionar como tal. Não adianta ter discursos contraditórios, querer ser reconhecido profissional da área da saúde e não assumir o ônus disso. O profissional que trabalha com a estética, em geral, tem dificuldade de entender que a saúde física e a estética fazem parte do conceito global de saúde, com consequências que podem ser benéficas ou maléficas, dependendo da situação. A gente precisa achar beleza no caos. Gosto de pensar assim. A pandemia é o caos, mas talvez seja o momento ideal para que os esteticistas se mobilizem e se posicionem no mercado de forma efetiva como profissionais da saúde. Ainda não existe essa identificação nem por parte dos próprios profissionais e nem do mercado.
Essa postura implicaria, então, na atenção total às normas de biossegurança, certo?
Além dos procedimentos de higiene de rotinas (lavar as mãos e usar máscaras, por exemplo), neste momento os profissionais da estética devem usar todos os equipamentos de proteção individual (EPIs) como capote, máscaras de proteção facial total, luvas, tudo especificado pela Anvisa. A estética não foi apontada como área essencial nesta pandemia, mas alguns procedimentos estéticos como uma drenagem linfática, por exemplo, podem ser necessários e indicados por médicos, o que permite que sejam realizados. Mas a proteção a si mesmo e ao paciente precisa ser redobrada e deve minimizar a possibilidade de contágio. Cabe ao profissional se paramentar adequadamente, ter todos os EPIs necessários, para que possa usar se for acionado para atender. O profissional da estética deve usar os mesmos EPIs utilizados por médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem quando for atuar numa urgência ou emergência neste contexto da pandemia.
Há quem não siga as regras pela falta de fiscalização.
O profissional tem que entender que o uso do EPI, independente de fiscalização, é proteção para ele e para o paciente. O paciente passa a olhar para o esteticista que cuida rigorosamente da biossegurança como um profissional diferenciado no mercado. O consumidor não denuncia o descumprimento dessas regras porque não vê a estética como saúde. Ele não sabe. Cabe aos profissionais educarem este consumidor. Essa questão da segurança não pode ser esquecida pelo profissional. Ele precisa se conscientizar e as entidades de classe têm essa responsabilidade também de promover essa consciência.
Como você avalia profissionais e clínicas que, impedidos de funcionar neste momento, estão oferecendo venda de vouchers, com pagamento antecipado e descontos, a fim de garantir remuneração durante a crise?
Tem que tomar cuidado. Se eu vendo, terei que entregar. É uma questão de logística. Teremos os clientes que tiveram o tratamento interrompido pela quarentena, os que adquiriram vouchers com desconto, e isso pode comprometer o atendimento. O profissional da estética fica no dilema entre atuar como profissional da saúde ou como um vendedor, na ânsia de fazer caixa e garantir a sobrevivência.
E as “brigas” entre categorias profissionais acerca de autorização para realizar determinados procedimentos? Como vê isso?
É uma briga entre profissionais baseada numa lógica mercadológica. É preciso que se reflita sobre o que estamos construindo: são relações profissionais de saúde baseadas numa competição comercial, uma guerra de mercado. É preciso construir uma interdependência entre esses profissionais de saúde, reconhecer que cada um tem o seu papel, seu lugar ao sol. Não precisa puxar o tapete do vizinho. Precisamos ter certeza de que estamos agindo da forma mais ética possível. Essa briga não protege o profissional de classe, mas mostra cada vez mais ao público que a intenção é ‘comercializar’ o serviço e não ‘profissionalizar’ o serviço.
O mercado está repleto de cursos que prometem formação, preparo e conhecimento. Nem tudo é confiável. O que pensa sobre isso?
Cursos de formação (técnicos, graduação, pós etc) são regulamentados eplo Ministério da Educação. É bom destacar que cursos de capacitação, atualização não formam especialistas. Isso é uma questão de mercado. É fácil criar e oferecer um curso. Quem compra, precisa pesquisar e conhecer o currículo de quem está oferecendo e isso só é possível na Plataforma Lattes, quando se trata realmente de pessoas capacitadas a ensinar. Só que isso, `{as vezes, não é valor pra quem consome. A pessoas muitas vezes querem fazer um curso com o ‘fulano famoso’. Há falsos especialistas em todas as áreas. Quem dá cartaz a eles é quem compra os cursos. É próprio da sociedade de consumo em que o ter é mais importante do que o ser. É preciso cuidado.
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